Por
Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral
Só nos faltava mais essa, a lei do silêncio

Ora, as peripécias do caso criam um nevoeiro demasiado suspeito sobre esse Direito orgulhoso. Em primeiro lugar, porque o país descobre agora, como é um caso de pessoa importante e só se fala disso, que as regras são estranhas. Pode alguém ficar um ano em prisão preventiva antes de ser acusado? Pois pode mesmo. Pode ficar mais outro ano até ser julgado? É que pode. E deve? Um ano, dois anos, três anos? Há milhares e milhares de pessoas que já passaram por isso. Uns condenados, outros absolvidos. Para os que foram absolvidos, a justiça foi uma tormento, uma insanidade incompreensível. E para nós, que só sabemos de alguns dos casos pelos jornais, foi indiferente?
Dirá o leitor: mas pode sempre haver erros na investigação, ela pode ser complicada, pode demorar muito tempo, ou até no fim o sujeito pode ser tão culpado como Judas (Judas era culpado?) mas não haver provas e safar-se. Pois pode. Só que a regra tem que proteger sempre o bem maior, que é a liberdade, e então tem que limitar o risco do arbítrio do Estado, o poder de tirar a liberdade, que fica todo na mão dos acusadores.
Por isso, a prisão preventiva só se justifica, segundo a lei, em condições excepcionais (o sujeito foi apanhado em flagrante delito e pode prosseguir a sua actividade criminosa, ou pode fugir) e tem mesmo de ser explicitamente justificada, sendo a decisão recorrível, para ser controlada por outras instâncias judiciais e não ficar entregue a uma só pessoa. Palavras certas da lei, mas não batem certo com o que se vive nas prisões.
Ao longo da minha vida de deputado, visitei muitas prisões (e pergunto porque é que os deputados não vão regularmente visitar as prisões, para conhecerem essa parte difícil da justiça). E encontrei tantas pessoas em prisão preventiva, por longos anos, que sempre me perguntei como é possível ser a justiça tão perigosa. É mesmo perigosa. Então, só as regras gerais, defendendo a segurança e a liberdade, aplicáveis sempre, podem proteger-nos a todos.
A regra mais importante que falta, vou-me convencendo, será reduzir drasticamente o tempo de prisão preventiva, obrigando a que haja acusação e julgamento em prazos curtíssimos depois da detenção. Admito que deve haver excepções: se o sicrano assassinou a mulher ou o vizinho deve ser imediatamente detido e só então começou a investigação, não se pode esperar a acusação formulada numa semana. Mas porque é que esse prazo não há-de ser mesmo de uns dias nos outros casos em que não estão em causa a vida de potenciais vítimas e em que não há perigo social, e em que portanto houve ou tem de haver uma investigação cuidadosa e atempada, que é a que conduz à prisão preventiva? Ou seja, para deter seria preciso ter a acusação pronta ou quase pronta, com um grau de convencimento do ministério público e do juiz muito acima de qualquer dúvida, perante factos documentados e na certeza de que seria perigoso que o acusado chegasse ao dia do julgamento em liberdade.
A obrigação de acusação imediata teria ainda duas outras vantagens. Determinaria que a investigação fosse feita com regras estritas em que a detenção não fosse um meio de investigar ou, pior, de anunciar publicamente a investigação. E, mais importante do que tudo, obrigava a que acabasse logo o segredo de justiça e todas as partes interviessem desde o início do processo em igualdade de circunstâncias. Ou seja, deixaria os tabloides e as fugas de informação fora de jogo.
Não há volta a dar: a Justiça é um árbitro social nos tempos da hiper-comunicação invasiva e torrencial. Os tribunais fazem parte dos telejornais e vão ser cada vez mais uma forma de informação. Na verdade, é esse fascínio pela publicidade que atrai a sua utilização intensa pelo Estado: o ministério público e a acusação, nos casos de grande relevo político ou social, asseguram rotineiramente a condenação por via da imprensa mesmo quando ainda não há data para formular a acusação. E, portanto, nesse momento nem se sabe se o tribunal condenará, quando uns anos mais tarde o processo chegar à barra.
Esse procedimento é pernicioso para todos. Pode ser vantajoso para uma acusação num caso concreto, pois dá uma enorme vantagem aos investigadores, porque podem alimentar cuidadosamente a imprensa com informações a conta-gotas e inverificáveis (o motorista foi a Paris? levava uma mala? a mala tinha dinheiro? temos uma novela para uma semana). Mas é desvantajoso para a Justiça e para o seu futuro, porque a resposta típica será limitar a capacidade de investigação, atando as suas mãos. E não há nada de mais ardentemente desejado pela delinquência económica, que é o crime mais perigoso dos nossos tempos.
Assim, a disputa da justiça torna-se um torneio em que as partes não discutem nem o Direito nem os factos, mas desembainham punhaladas pelas sombras recônditas das redacções e dos amigos. Para o ilustrar com algum sarcasmo, diz o DN que o procurador e o juiz do caso Sócrates reagiram com indignação à sua entrevista escrita na TVI e o acusam de “violação do segredo de justiça” e até, suprema ignomínia, de querer “manipular a investigação”.
De facto, tenha Sócrates razão ou não nos factos e interpretações que discute, o seu direito de expressão é legalmente inquestionável. Ninguém, nem uma pessoa livre, nem um detido, nem um preso condenado, sofre qualquer limitação constitucional quanto ao direito de expressão, e os magistrados sabem-no com toda a certeza. A sua eventual reacção (nestas coisas, como sempre, eles não são citados, mas uma “fonte” terá comunicado a sua irritação) só demonstraria que não estariam dispostos a ceder o seu monopólio da informação pública exclusiva durante o período em que o processo vive na terra de ninguém em que o detido não conhece a acusação e portanto não se pode defender.
Teixeira da Mota, que tratou esta questão com todo o cuidado, invoca que, podendo haver razões superiores que imponham um limite momentâneo a entrevistas presenciais, elas são no entanto desconhecidas e implausíveis, e portanto predomina o princípio da liberdade.
Em todo o caso, a evocação de uma putativa “lei de silêncio” é errada. Primeiro, porque não vejo como possa ser constitucional. Segundo, porque, se até agora convivemos tão notoriamente com a divulgação de informações secretas do caso, esse facto só é imputável a uma das partes, porque a outra simplesmente não tem acesso ao processo e só pode ler os jornais que falam do processo. A lei do silêncio parece ser desconhecida por quem a evoca.
Haja ou não haja algum desenvolvimento deste incidente, e presumo que não haverá quem queira deitar mais gasolina na fogueira, o problema vai batendo à porta da Procuradora Geral da República. Ela tem uma obrigação fundamental, que é proteger a aplicação meticulosa das regras e, assim, garantir também que no presente e no futuro o ministério público não fique legalmente desarmado em investigações que venha a fazer. É a ela que compete a palavra da sensatez. E a sensatez seria fazer proceder a uma acusação clara tão depressa quanto possível. Pouparia deste modo os episódios rocambolescos de uma parte que alimenta os tabloides vorazes com notícias de alecrim e manjerona, culminadas por anúncios improcedentes acerca de investigações absurdas sobre “quem” violou o segredo de justiça, que serão depressa arquivadas, para tudo se ir arrastando meses fora, tornando cada dia mais político um processo que só é policial e judicial se for encerrado conclusivamente, pela condenação ou pela absolvição.
A rapidez do processo também nos livrará de qualquer alegação de perseguição por um fantasma do fascismo. Historicamente perniciosa e deturpada, essa comparação alimentar-se-á sempre da suspeita sobre os protagonistas, das crises processuais e dos paradoxos de uma justiça que fala demais para a imprensa e de menos para os detidos. Para quem queira o meu conselho, é melhor enterrar essa alegação concluindo o processo.
Sócrates tem um dever especial perante Portugal, porque foi primeiro-ministro. As acusações que se insinuam sobre a sua conduta são por isso gravíssimas. Mais uma razão para que a justiça funcione de modo a que o seu próprio procedimento não se torne um problema para Portugal. Façam já a acusação e comece o julgamento.
DO PÚBLICO-ON LINE
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