domingo, janeiro 11, 2015

LOUÇÃ E A PRISÃO PREVENTIVA!

Por

 

Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral

Francisco Louçã

5 de Janeiro de 2015, 09:28

Por

Só nos faltava mais essa, a lei do silêncio

trialMetade do país acredita piamente que Sócrates é inocente e perseguido e a outra metade está certa de que é culpado e que esta prisão preventiva já vem tarde demais. A paixão da diferença política atravessou-se neste caso porque, de um forma ou de outra, ele é sempre político. Mas há uma dimensão estritamente judicial que deve importar a toda a gente, aos condenadores como aos absolvidores: a todos tem que cuidar saber se as regras são cumpridas e, mais, se as regras são as adequadas num Estado que, orgulhosamente, se chama “de Direito”.
Ora, as peripécias do caso criam um nevoeiro demasiado suspeito sobre esse Direito orgulhoso. Em primeiro lugar, porque o país descobre agora, como é um caso de pessoa importante e só se fala disso, que as regras são estranhas. Pode alguém ficar um ano em prisão preventiva antes de ser acusado? Pois pode mesmo. Pode ficar mais outro ano até ser julgado? É que pode. E deve? Um ano, dois anos, três anos? Há milhares e milhares de pessoas que já passaram por isso. Uns condenados, outros absolvidos. Para os que foram absolvidos, a justiça foi uma tormento, uma insanidade incompreensível. E para nós, que só sabemos de alguns dos casos pelos jornais, foi indiferente?
Dirá o leitor: mas pode sempre haver erros na investigação, ela pode ser complicada, pode demorar muito tempo, ou até no fim o sujeito pode ser tão culpado como Judas (Judas era culpado?) mas não haver provas e safar-se. Pois pode. Só que a regra tem que proteger sempre o bem maior, que é a liberdade, e então tem que limitar o risco do arbítrio do Estado, o poder de tirar a liberdade, que fica todo na mão dos acusadores.
Por isso, a prisão preventiva só se justifica, segundo a lei, em condições excepcionais (o sujeito foi apanhado em flagrante delito e pode prosseguir a sua actividade criminosa, ou pode fugir) e tem mesmo de ser explicitamente justificada, sendo a decisão recorrível, para ser controlada por outras instâncias judiciais e não ficar entregue a uma só pessoa. Palavras certas da lei, mas não batem certo com o que se vive nas prisões.
Ao longo da minha vida de deputado, visitei muitas prisões (e pergunto porque é que os deputados não vão regularmente visitar as prisões, para conhecerem essa parte difícil da justiça). E encontrei tantas pessoas em prisão preventiva, por longos anos, que sempre me perguntei como é possível ser a justiça tão perigosa. É mesmo perigosa. Então, só as regras gerais, defendendo a segurança e a liberdade, aplicáveis sempre, podem proteger-nos a todos.
A regra mais importante que falta, vou-me convencendo, será reduzir drasticamente o tempo de prisão preventiva, obrigando a que haja acusação e julgamento em prazos curtíssimos depois da detenção. Admito que deve haver excepções: se o sicrano assassinou a mulher ou o vizinho deve ser imediatamente detido e só então começou a investigação, não se pode esperar a acusação formulada numa semana. Mas porque é que esse prazo não há-de ser mesmo de uns dias nos outros casos em que não estão em causa a vida de potenciais vítimas e em que não há perigo social, e em que portanto houve ou tem de haver uma investigação cuidadosa e atempada, que é a que conduz à prisão preventiva? Ou seja, para deter seria preciso ter a acusação pronta ou quase pronta, com um grau de convencimento do ministério público e do juiz muito acima de qualquer dúvida, perante factos documentados e na certeza de que seria perigoso que o acusado chegasse ao dia do julgamento em liberdade.
A obrigação de acusação imediata teria ainda duas outras vantagens. Determinaria que a investigação fosse feita com regras estritas em que a detenção não fosse um meio de investigar ou, pior, de anunciar publicamente a investigação. E, mais importante do que tudo, obrigava a que acabasse logo o segredo de justiça e todas as partes interviessem desde o início do processo em igualdade de circunstâncias. Ou seja, deixaria os tabloides e as fugas de informação fora de jogo.
Não há volta a dar: a Justiça é um árbitro social nos tempos da hiper-comunicação invasiva e torrencial. Os tribunais fazem parte dos telejornais e vão ser cada vez mais uma forma de informação. Na verdade, é esse fascínio pela publicidade que atrai a sua utilização intensa pelo Estado: o ministério público e a acusação, nos casos de grande relevo político ou social, asseguram rotineiramente a condenação por via da imprensa mesmo quando ainda não há data para formular a acusação. E, portanto, nesse momento nem se sabe se o tribunal condenará, quando uns anos mais tarde o processo chegar à barra.
Esse procedimento é pernicioso para todos. Pode ser vantajoso para uma acusação num caso concreto, pois dá uma enorme vantagem aos investigadores, porque podem alimentar cuidadosamente a imprensa com informações a conta-gotas e inverificáveis (o motorista foi a Paris? levava uma mala? a mala tinha dinheiro? temos uma novela para uma semana). Mas é desvantajoso para a Justiça e para o seu futuro, porque a resposta típica será limitar a capacidade de investigação, atando as suas mãos. E não há nada de mais ardentemente desejado pela delinquência económica, que é o crime mais perigoso dos nossos tempos.
Assim, a disputa da justiça torna-se um torneio em que as partes não discutem nem o Direito nem os factos, mas desembainham punhaladas pelas sombras recônditas das redacções e dos amigos. Para o ilustrar com algum sarcasmo, diz o DN que o procurador e o juiz do caso Sócrates reagiram com indignação à sua entrevista escrita na TVI e o acusam de “violação do segredo de justiça” e até, suprema ignomínia, de querer “manipular a investigação”.
De facto, tenha Sócrates razão ou não nos factos e interpretações que discute, o seu direito de expressão é legalmente inquestionável. Ninguém, nem uma pessoa livre, nem um detido, nem um preso condenado, sofre qualquer limitação constitucional quanto ao direito de expressão, e os magistrados sabem-no com toda a certeza. A sua eventual reacção (nestas coisas, como sempre, eles não são citados, mas uma “fonte” terá comunicado a sua irritação) só demonstraria que não estariam dispostos a ceder o seu monopólio da informação pública exclusiva durante o período em que o processo vive na terra de ninguém em que o detido não conhece a acusação e portanto não se pode defender.
Teixeira da Mota, que tratou esta questão com todo o cuidado, invoca que, podendo haver razões superiores que imponham um limite momentâneo a entrevistas presenciais, elas são no entanto desconhecidas e implausíveis, e portanto predomina o princípio da liberdade.
Em todo o caso, a evocação de uma putativa “lei de silêncio” é errada. Primeiro, porque não vejo como possa ser constitucional. Segundo, porque, se até agora convivemos tão notoriamente com a divulgação de informações secretas do caso, esse facto só é imputável a uma das partes, porque a outra simplesmente não tem acesso ao processo e só pode ler os jornais que falam do processo. A lei do silêncio parece ser desconhecida por quem a evoca.
Haja ou não haja algum desenvolvimento deste incidente, e presumo que não haverá quem queira deitar mais gasolina na fogueira, o problema vai batendo à porta da Procuradora Geral da República. Ela tem uma obrigação fundamental, que é proteger a aplicação meticulosa das regras e, assim, garantir também que no presente e no futuro o ministério público não fique legalmente desarmado em investigações que venha a fazer. É a ela que compete a palavra da sensatez. E a sensatez seria fazer proceder a uma acusação clara tão depressa quanto possível. Pouparia deste modo os episódios rocambolescos de uma parte que alimenta os tabloides vorazes com notícias de alecrim e manjerona, culminadas por anúncios improcedentes acerca de investigações absurdas sobre “quem” violou o segredo de justiça, que serão depressa arquivadas, para tudo se ir arrastando meses fora, tornando cada dia mais político um processo que só é policial e judicial se for encerrado conclusivamente, pela condenação ou pela absolvição.
A rapidez do processo também nos livrará de qualquer alegação de perseguição por um fantasma do fascismo. Historicamente perniciosa e deturpada, essa comparação alimentar-se-á sempre da suspeita sobre os protagonistas, das crises processuais e dos paradoxos de uma justiça que fala demais para a imprensa e de menos para os detidos. Para quem queira o meu conselho, é melhor enterrar essa alegação concluindo o processo.
Sócrates tem um dever especial perante Portugal, porque foi primeiro-ministro. As acusações que se insinuam sobre a sua conduta são por isso gravíssimas. Mais uma razão para que a justiça funcione de modo a que o seu próprio procedimento não se torne um problema para Portugal. Façam já a acusação e comece o julgamento.
DO PÚBLICO-ON LINE

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