segunda-feira, fevereiro 23, 2015

FRANCISCO LOUÇÃ E A GRÉCIA!


Francisco Louçã

23 de Fevereiro de 2015, 08:26

Por


O mastro de Ulisses e as sereias dos nossos tempos

ulissesNa noite em que foi anunciado o acordo no Eurogrupo, Paul Krugman apresentou-nos uma adivinha, lembrando Marlon Brando: o que resulta do cruzamento entre um padrinho da Mafia e um bando de ministros das finanças? A resposta dele é esta: alguém que nos faz uma proposta que não conseguimos compreender. Contra a nebulosa das ameaças, tentemos então compreender.
Do acordo, o governo grego conseguiu seis vantagens. A primeira, sobretudo dos dias anteriores, é um enorme impacto de simpatia entre a opinião pública europeia. A Alemanha nunca tinha sido desafiada e note, caro leitor ou leitora, o significado da conferência de imprensa de Varoufakis frente a Schauble para um trabalhador português (ou alemão): foi uma alegria numa época de tristezas. A segunda foi evitar a armadilha de Samaras, que tinha acordado com a troika novas medidas de austeridade para o fim de fevereiro (redução de pensões e aumento do IVA). A terceira foi voltar a poder usar a dívida pública como colateral para os empréstimos aos bancos nacionais. A quarta foi a pequena margem de manobra para o uso do saldo primário de 2015, permitindo readmitir funcionários públicos que tinham sido despedidos. A quinta é o reconhecimento de um processo de negociação da dívida, embora ainda indefinido. Finalmente, o ganho que é o reconhecimento do fim da troika, embora seja sobretudo simbólico – mas a política também se faz de símbolos.
Ao mesmo tempo, o acordo representa quatro grandes concessões. A Grécia aceitou a supervisão decisória sobre todas as suas medidas, num modelo pior do que o que fora proposto na segunda feira passada (e retirado por imposição de Merkel). Não há financiamento ponte, que seria incondicional, porque o financiamento virá em abril consoante a revisão dos resultados do acordo. E, hoje, será apresentada uma lista de medidas à aprovação europeia, pressão total desde a primeira semana. Em segundo lugar, o acordo vale por quatro e não por seis meses. O que é muito importante: mal o programa termine, a Grécia terá mais de 6 mil milhões a pagar ao BCE, logo ao BCE. Terceiro, Tsipras não pode mobilizar para a economia os fundos disponíveis para os bancos, como precisava. Quarto, o governo aceitou repor o saldo primário de 2016 em 4,5%, o que significaria novas medidas de austeridade.
Numa palavra, tudo se resolve nos próximos meses. Ganhar tempo, que tantas vezes é fundamental, é sempre não decidir tudo: pode servir para preparar uma resolução e vencer, como pode ser uma forma de adiar ou até de esperar.
Ora, o tempo é importante para a Europa. A União também ganhou margem de manobra, aliás: a pressão diminuiu e isso é negativo para Tsipras. Para mais, o governo grego não tem nem terá qualquer aliado entre os outros governos: o centro está alinhado com Merkel, porque esse é o efeito de uniformização política produzido pelas regras europeias, que só reconhecem os mercados financeiros. Dos partidos socialistas não “vêm reforços”, só vem austeridade. Mas, entretanto, o quadro institucional está a mudar radicalmente, porque o governo alemão, o tirano silencioso, passou a conduzir as negociações e as decisões. Numa palavra, sentou-se no trono. Dijsselbloem, em nome de Merkel e sem vergonha nem hesitação, retirou na segunda feira uma proposta de acordo negociada por Juncker e o presidente da Comissão Europeia desvaneceu-se. O fechamento institucional da Europa acelerou-se com esta crise e não tem remédio.
Para a Grécia, ganhar tempo pode ser útil. Mas o tempo tem um preço: em junho, no fim do acordo, ou a Grécia estabelece um novo programa de austeridade ou pedirá financiamento nos mercados, se não tiver uma alternativa de redução substancial e imediata do serviço da dívida. Ou seja, a sua restrição externa é imperativa. Até então, terá pouca capacidade de criar investimento e emprego e, portanto, a sua restrição interna mantém-se.
Dir-se-á que David pode enfrentar Golias, mas tem de ter uma pedra na funda. O governo grego negociou sem Plano B e o adversário percebeu que Varoufakis não admitia nem preparava a alternativa, que é a saída do euro. Merkel teve por isso a possibilidade de ser ela a escolher entre impor as condições do acordo, com algumas cedências, ou forçar a saída da Grécia: durante a semana, pareceu preferir a segunda opção, inclinou-se depois para o acordo que será trabalhado durante esta semana com novas imposições e humilhações.
Haverá assim quatro meses de chantagens. E de negociações políticas: como a dívida pública grega é detida predominantemente por instituições e não por fundos privados, ao contrário do que se passou com as anteriores grandes restruturações de dívida pública, toda a questão é política e entre Estados. Mas são negociações em que não há saída sem a resolução dos problemas de fundo. Em junho, quando se fechar a janela de oportunidade, ou fica um mau acordo e a continuação da austeridade, ou se abre a porta de saída.
Muito pode ser feito entretanto. Uma resolução bancária sistémica, como aqui sugeri, permitiria proteger o balanço dos bancos e a sua liquidez, abater a sua dívida, prepará-los para se protegerem de ataques pelo BCE e orientar o crédito para políticas de curto prazo de criação de emprego e de aumento da procura.
Em todo o caso, um prazo é um tempo que terminará. Em junho, haverá novas rondas de negociações depois deste quatro meses de dificuldades e, porventura, o povo grego será chamado a pronunciar-se sobre o que vem. Porque em última análise, é sempre a democracia que está a ser julgada: podemos decidir? Somos donos de nós próprios?
Dizia Varoufakis, lembrando o Livro XII da Odisseia, que, como Ulisses, prefere amarrar-se ao mastro quando passar pela ilha das sereias, para manter compromissos sólidos sem se desviar. A Grécia – e nós com ela – bem precisamos de um mastro forte e de velas abertas. Mas não são sedutoras sereias que temos que passar, são monstros bem mais ferozes. São hoje os nossos donos.

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