quarta-feira, abril 01, 2015

UMA ESTRANHA RELAÇÃO!


O Tribunal da Relação no divã


Não terei sido certamente o único a ficar siderado com o estilo e a «lógica pastoril» do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativo ao recurso dos advogados de José Sócrates. Quis imaginar como seria o juiz relator que ousara redigir uma peça tão peculiar. Procurei na Internet e apenas alcancei que o Juiz Desembargador Agostinho Torres, o autor do acórdão, fizera uma breve incursão fora da magistratura judicial pela mão do Governo de Santana Lopes & Portas. Por uma coincidência dos diabos, indicado para seu adjunto na Polícia Judiciária pelo Juiz Conselheiro Santos Cabral, o relator do pedido de habeas corpus.

Quando a curiosidade já esfriara, eis que um leitor me recomendou a leitura de um artigo de Agostinho Torres. O artigo em causa, intitulado «Exclusividade remuneratória dos juízes: a quanto e até quando nos obrigas?», ajudou a fazer um esboço da criatura — ou, nas palavras do leitor, um artigo que «foi “luminoso” na avaliação da isenção possível desse juiz face a um político dito “despesista”.»

Agostinho Torres disserta longamente sobre a «degradação do estatuto remuneratório» dos magistrados, que, segundo escreve, «atingiu quase 30%». Sendo embora uma situação que atinge todos os agentes do Estado, com excepção do conselho de administração do Banco de Portugal (e talvez dos outros reguladores), o juiz desembargador procura analisar os efeitos desta degradação na área que melhor conhecerá: a magistratura judicial.

Questiona Agostinho Torres: «A degradação do estatuto remuneratório implica a perda da serenidade que a estabilidade financeira propiciaria?» A conclusão que extrai não deixa margem para dúvidas:
    «Publicamente, o universo dos juízes diria sob juramento de hora que manteria a serenidade. Porém, na privacidade cúmplice dos corredores do desabafo, sem ouvidos indiscretos, ariscaria afirmar que quase todos diriam emotivamente o contrário e bem zangados com o poder político.»

E o juiz desembargador enumera diversas situações que podem pôr em crise a «serenidade» da magistratura judicial. Eis um exemplo dado:
    «(…) o juiz penal, afectado pelas ditas reduções remuneratórias, não estará já demasiado sensível à indignação pública pelos gastos perdulários eleitoralistas de certos governos e pela inexplicada falta de transparência ética da envolvência de notáveis em crises bancárias eivadas de fortes suspeições de ganância e de controle do poder financeiro?»

Daí que Agostinho Torres faça uma confissão:
    «O sentir (por muitos) de um ataque quase pessoal de alguns governantes e responsáveis políticos aos juízes pelo estado da justiça e pela tomada de certas decisões que puseram colarinhos brancos (ainda que poucos) na barra dos tribunais, não é tido como uma espécie de vingança, traduzida, entre o mais, no corte remuneratório dos últimos anos? Claro que é! Não sei se com razão, mas todos sabemos que, sendo os juízes humanos, em tempos de crise a serenidade que devia ser de oiro, corre o risco de passar a ser de latão.»

É neste contexto que o juiz desembargador descortina o que «os poderes de Estado, na sôfrega facção legislativa e, sobretudo, executiva» ainda não enxergam: «o Séc. XXI pode bem vir a ser o da emergência do poder judicial, como poder público de controlo de outros poderes de Estado e de um novo modo de exercício do judiciário.» Certamente que o juiz desembargador passou a escrito o que lhe vai no cocuruto. Atente-se:
    «Quer-me parecer que, neste conspecto, os poderes de Estado, na sôfrega facção legislativa e, sobretudo, executiva (predominante em todo o Séc. XX), nem sequer têm sido inteligentes. No afã de nivelar tudo e todos fora do estado social, esquecem que, e muitos o avisaram, o Séc. XXI pode bem vir a ser o da emergência do poder judicial, como poder público de controlo de outros poderes de Estado e de um novo modo de exercício do judiciário. Não me refiro, obviamente, aos “superjuízes”, se bem que esta nomenclatura tão querida a certos meios de comunicação social possa, aqui, reflectir tão somente o desejo messiânico de um poder maior mas providencialmente justiceiro.»

É inquestionável que Agostinho Torres sabe prender a atenção do leitor. Mas, infelizmente, dá por terminado o artigo sem nos elucidar como será, ou já é, o «poder judicial, como poder público de controlo de outros poderes de Estado e de um novo modo de exercício do judiciário». No Séc. XXI — o da «pós-modernidade». É pena, porque nos leva a conjecturar podermos estar perante alguém que não revela, no fundo, especiais simpatias pelas sociedades abertas

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