sexta-feira, janeiro 09, 2015

AINDA A PRISÃO DE SÓCRATES ( DO BLOG POLITEIA http://politeiablogspotcom.blogspot.pt/)

Sábado, 3 de janeiro de 2015

AINDA A PRISÃO DE SÓCRATES



A DISCRICIONARIEDADE EM PROCESSO PENAL
 

 

A arbitrariedade é o pecado capital em processo penal. Ela é a consequência normal da ampla discricionariedade concedida ao juiz neste tipo de processo. Já aqui fizemos referência a este fenómeno e às suas consequências sobre os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente assegurados.

Contrariamente ao que se passa no direito administrativo em que teórica e praticamente há a possibilidade de impedir a execução de um acto discricionário da administração manifestamente ilegal por via de recurso contencioso, antecedido de uma providência cautelar na qual se peça a suspensão da sua execução, no direito processual penal essa garantia não existe.

Se o juiz de instrução criminal, a pedido do Ministério Púbico, concede a prisão preventiva ao abrigo do seu poder discricionário, por maior que seja a ilegalidade por ele cometida, por mais arbitrária que a sua decisão tenha sido, desde que determinados requisitos formais mínimos tenham sido garantidos (inaplicabilidade do regime de Habeas Corpus), não há juridicamente meio de impedir a execução dessa decisão. O arguido, suspeito da prática de crime doloso, punível com pena de prisão em princípio superior a três anos, vai mesmo para a cadeia, e somente por via do recurso para a instância superior poderá pôr termo à execução da medida de coacção decretada. Mas o tempo que passou na prisão já ninguém lho tira e o juízo que a opinião pública faz do facto que lá o levou ambém não. Isto sem esquecer que o tribunal de instância superior goza igualmente de grande discricionariedade na apreciação da decisão tomada pelo tribunal inferior.

Como também já foi referido noutro post, o facto de nas faculdades de direito não haver uma cadeira de Teoria do Direito, na qual a discricionariedade pudesse ser estudada como categoria autónoma, leva a que ela somente seja estudada em Direito Administrativo a propósito da actuação da administração.

Portanto, para além da ampla discricionariedade concedida aos juízes em processo penal, junta-se a impreparação da maior parte dos juristas para atacar este específico problema e, principalmente, para criar o necessário clamor público que leve a reformulação da lei e dos princípios em que essa mesma lei até agora tem assentado.

É de facto chocante que alguém esteja preso sem julgamento sem sequer ter conhecimento dos específicos crimes de que o acusam, dos concretos factos em que os mesmos se fundamentam e que nem o processo possa consultar para fazer eficazmente a sua defesa. Este regime abre a porta a todas as arbitrariedades e permite que a luta política se infiltre na justiça pela porta dos fundos, sempre que o suspeito é uma personalidade política.

O caso de Sócrates é exemplar. O Ministério Público e o juiz são os responsáveis por o processo ter vindo para a praça pública. Desde a prisão à chegada de Paris, passando pelas buscas da Rua Braamcamp até aos factos meticulosamente filtrados para os jornais veículos das teses da investigação tudo foi criteriosamente trabalhado. O que se pretendia demonstrar era uma situação típica da luta política não inteiramente coberta pelo direito mas de grande eficácia junto da opinião pública capaz de gerar instintivamente um sentimento de revolta e de condenação perfeitamente compreensível. Ou seja, que um ex-governante vivia muito acima das suas possibilidades e que levava um estilo de vida insusceptível de ser compreendido à luz dos rendimentos por ele declarados.

Este é o ponto de partida e constitui o facto mais facilmente demonstrável. Este facto, porém, não constitui crime no direito penal português. Por outras palavras, o enriquecimento ilícito não é um tipo legal de crime, consequentemente ninguém pode ser preso por viver acima das suas possibilidades ou por ser titular de um património que está muito para além dos seus rendimentos. Se fosse possível, a maior parte daqueles que em Portugal não trabalham por conta de outrem, ou seja, desde os pequenos e médios comerciantes, industriais e agricultores, passando pelas profissões liberais, pelos artífices e prestadores de serviços de todo o tipo até aos grandes patrões do comércio, da indústria, da agricultura e dos serviços, estaria presa e não haveria cadeias que chegassem para albergar tanta gente…

Para que tais situações possam ser criminalmente atacáveis é preciso que a acusação, o Ministério Público, faça prova dos específicos crimes que podem levar àquele resultado, como, por exemplo, é o caso, entre muitos outros, da corrupção, da fraude fiscal, do branqueamento de capitais, da participação ilícita em negócio, etc., etc.

Acontece, porém, que o processo penal tal como está regulado na nossa lei permite que uma acusação menos escrupulosa e um juiz parcialmente justiceiro possam (não quer dizer que devam ou que tal comportamento seja legal) prender uma pessoa porque suspeitam que um estilo de vida manifestamente acima das possibilidades de quem o leva assenta em actos criminosos. E sabem que ao fazê-lo, principalmente nos termos em que o fazem, isto é, relativamente a um político, que isto cai bem numa opinião pública sedenta de “sangue” e exangue por força das brutais medidas de austeridade que lhe têm sido impostas para pagar a falcatrua dos bancos, a insensatez dos governantes e os desvarios de um sistema que não olha a meios para aumentar os lucros à custa da exploração desenfreada da maior parte.

Simplesmente, isto é o fim do estado de direito. É mesmo um atentado ao estado de direito e quem perpetra este tipo de acções não pode deixar de ser responsabilizado. Em processo penal não vale tudo e muito menos vale usar o processo penal como instrumento de luta política.

Os factos ontem dados a conhecer por José Sócrates, e de cuja existência já se suspeitava, configuram uma situação da máxima gravidade a que urge rapidamente pôr termo. A Justiça não pode prender um cidadão por suspeita de crimes não indiciados por factos específicos, e muito menos negar-se a exibir perante o detido as provas em que fundamenta a sua detenção. A prisão não pode ser o instrumento primeiro da investigação nem pode servir para aterrorizar ou humilhar o arguido.

A prisão de Sócrates é, como desde a primeira hora se tinha depreendido, ilegal. Portanto, não pode ser mantida apesar de gozar da aceitação de uma parte da opinião pública, dos partidos do Governo e da relativa compreensão da nomenklatura do PS, suficientemente satisfeita desde que Sócrates possa fazer a “defesa da sua verdade”.

Como acabou de se ver, depois da intervenção de Marques Mendes na SIC desta noite, há uma perfeita sintonia entre as teses do PSD e as da acusação e do juiz de instrução. Também Marques Mendes apenas está interessado em sublinhar a tal divergência acima assinalada, que, como é óbvio, é a que “rende” na opinião pública.

Estado de direito, democracia, respeito pelos princípios essenciais do direito penal são conceitos despidos de conteúdo sem quaisquer consequências práticas. Marques Mendes tem a vantagem de nem sequer disfarçar, embora na pequenez do seu raciocínio esteja convencido do contrário.

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